Tribunal da Inquisição
Quando nos debruçamos sobre a relação entre acusadas de feitiçaria1 e os inquisidores que conduziram seus processos, muitas vezes nos deparamos com a seguinte pergunta: de que forma os julgamentos de pessoas evidentemente inocentes dos crimes a elas atribuídos puderam produzir relatos e confissões, que não apenas lhes imputavam a culpa, mas igualmente confirmavam o imaginário (teológico e popular) a respeito da bruxaria?
Um dos argumentos constantemente utilizados para responder essa pergunta vem sendo o da tortura. Segundo esse argumento, uma vez que uma grande parte das confissões foi obtida sob tortura – e com requintes de crueldade – as acusadas confessavam qualquer coisa que as livrasse de novos suplícios, sendo que a execução – quase inevitável após a confissão – seria considerada por elas como um alívio para os seus sofrimentos.
Esse componente não pode ser desprezado, em especial em julgamentos ocorridos na Alemanha, França, Itália e Espanha, onde o uso da tortura era disseminado, mas dois contra-argumentos precisam ser levados em consideração: em processos ingleses e norte-americanos (como no caso de Salem, Massachussets, em 1692), nos quais não se recorria ostensivamente à tortura para a obtenção de confissões, surge o mesmo tipo de depoimento das acusadas, que não apenas confirma a acusação, mas igualmente se enquadra no discurso teológico dos inquisidores. Além disso, existe uma característica comum nos processos de bruxaria: confissões extraídas após uma sessão de tortura eram, posteriormente, negadas pelas acusadas, que obstinavam-se em dizer que falaram tais coisas pelo temor de novos suplícios.
Entre o “confessar sob tortura”, pura e simplesmente, e a assimilação de uma culpa dentro de moldes precisos, ajustados ao dizer dos teólogos, existia portanto um lapso temporal no qual afirmações e negativas se sucediam. Depreende-se dessa maneira a existência de um processo pelo qual as negativas gradualmente eram anuladas.
Outro argumento normalmente utilizado – e que não difere grandemente do anterior – é que as acusadas de feitiçaria, em suas confissões, apenas repetiam o discurso teológico corrente, uma vez que a confissão espontânea, algumas vezes, evitava a pena de morte. Ou seja: a bruxa confessava aquilo que o inquisidor queria ouvir na esperança de, com isso, poupar a própria vida. Esse argumento, embora me pareça mais próximo daquilo que se pode efetivamente apurar, falha por estabelecer uma relação causal demasiado simplista.
Sem dúvida, muitas acusadas confessavam por saber que a confissão poderia evitar a pena capital. Essas confissões, indubitavelmente, acabavam por enquadrar-se, em um determinado momento, no discurso teológico. Mas existe nos processos, quase sem exceção, um intervalo de tempo entre as primeiras confissões (mesmo naquelas obtidas sob tortura) e aquelas que, finalmente, registravam coerência com aquilo que os compêndios contemporâneos sobre bruxaria pontificavam. Era nesse intervalo que a mudança do discurso se processava e que a suposta bruxa deixava de falar a “sua língua”, passando a falar a “língua do inquisidor”.
Para deixar mais claro essa mudança de discurso, consideremos o seguinte: a grande maioria dos processos de bruxaria tem uma dinâmica característica. Suas diferenças, por mais profundas que sejam sob o aspecto regional, não tornam impossível traçar linhas gerais que tipifiquem o “processo de bruxaria” por excelência. Pude vislumbrar essas características persistentes ao examinar os julgamentos de Salem, Massachussets, em 1692, e Carlo Ginzburg nos dá um exemplo modelar ao referir-se ao julgamento de Chiara Signorini, em Modena, em princípios do século XVI2.
A acusação de bruxaria surgia, sempre, a partir de um suposto maleficia: este podia ser a doença repentina de uma pessoa ou de animais domésticos ou, em casos menos comuns, problemas causados à plantação ou ainda ao próprio clima. Denúncias relativas à “provas espectrais”3 ou à participação da acusada em sabás, etc., costumavam ser sempre posteriores e em corroboração às denúncias iniciais: em Salem, as denúncias surgiram a partir da doença inexplicável das meninas “aflitas”, iniciando-se pela família Parris. Em Modena, a partir da doença de Margherita Pazzani. Em Boston, em 1688, são as filhas de John Goodwin que adoecem e levam a julgamento Mary Glover.
A acusada era tipicamente alguém do convívio daquele que foi afligido ou prejudicado. De uma forma geral, um subordinado direto, alguém em posição social inferior ou, ainda, alguém que, mesmo em posição de destaque na comunidade, tinha incorrido na ira ou em situação de disputa com o acusador. Chiara Signorini era ex-colona de Margherita Pazzani. Tituba, a grande catalisadora dos eventos de Salem, era escrava dos Parris. A própria família Parris, embora influente, tinha disputas importantes com outras famílias da região. Quando as acusações chegavam ao ponto de generalizar-se, ocasionando um verdadeiro episódio de caça às bruxas, os alvos preferenciais eram pessoas que não se enquadravam ao quadro social vigente: beberrões, solteirões ou viúvas amargas e maledicentes, curandeiras e blasfemos. Foi o caso, em Salem, de Sarah Good, mendiga semi-louca que se transformou em alvo preferencial por seu comportamento anti-social. Foi também o caso de inúmeros judeus e cristãos-novos – desprezando-se, obviamente causas e interesses escusos diversos – que foram entregues pelos seus vizinhos à Inquisição.
A acusação, obviamente, era sempre a mesma: tais pessoas seriam as causadoras dos infortúnios, graças às suas artes mágicas. E é justamente aqui que começa a se estabelecer a diferença: a acusação inicial baseia-se na crença popular de que determinadas pessoas, por serem como são, ou por terem aprendido de “outras como elas” determinadas artes, podem causar o maleficia. Já a acusação formal sempre atribui essa capacidade ao pacto demoníaco e não a um poder pessoal inato ou aprendido de forma tradicional. A distância entre o universo mental do acusador e do acusado e aquele universo mental específico dos inquisidores, se evidencia justamente nessa fase inicial. A partir daí, inicia-se um processo em que os inquisidores, à revelia de acusadores e acusados, buscarão de todas as formas enquadrar estes últimos num esquema de pensamento pré-estabelecido – marcado pela figura do pacto, do sabá, da anti-religião – que é estranho, via de regra, tanto aos acusados quanto a seus acusadores.
Ginzburg afirma que a resignificação das confissões das acusadas de feitiçaria por parte do inquisidor, fazendo com que elas se adequassem ao discurso teológico e, dessa forma, se enquadrassem às exigências legais que permitiriam a condenação, somente era possível devido à peculiaridade das crenças das acusadas4. Quando Chiara Signorini admitiu ter causado o maleficia contra Margherita Pazzani, ela inicialmente alegou tê-lo feito por intermédio de Nossa Senhora, para depois, sob influência do inquisidor, dizer que fora o diabo o seu auxiliar. Para Ginzburg, Nossa Senhora e o diabo são simplesmente representações distintas de uma mesma divindade popular: uma divindade que vem em auxílio dos excluídos, para vingá-los ou propiciá-los, e justamente por isso é possível com alguma facilidade transformar uma imagem (N. Senhora) na outra (o diabo).
Creio estar sobejamente demonstrada essa particularidade da religiosidade popular, em especial no Medievo e princípios da Idade Moderna, que mistura figuras “sagradas” a figuras “demoníacas” com propósitos práticos. Isto não apenas na obra do próprio Ginzburg, como em diversos outros estudos sobre bruxaria. Laura de Mello e Souza, por exemplo, ao discorrer sobre as visitações do Santo Ofício ao Brasil, nos dá diversos exemplos de orações e conjuros onde os nomes de Cristo, da Virgem Maria e de santos misturam-se, numa mesma frase, aos de Satanás, Lúcifer e outras potestades infernais5. Porém, julgo que essa característica dúbia e decididamente pragmática da religiosidade popular (especialmente camponesa), não basta para explicar toda e qualquer apropriação do discurso da feiticeira por parte do inquisidor e seu ajustamento ao discurso teológico.
Existem inúmeros registros de curas miraculosas ou sobrenaturais, ou mesmo de vinganças sobrenaturais – aparições da Virgem, “conversas” com santos, visões e vozes espectrais que se fazem ouvir, êxtase e prostração – que não resultaram em acusações de feitiçaria. Muito pelo contrário, foram exatamente esses elementos e alegações, feitas publicamente e com a corroboração de diversas testemunhas, que levaram à canonização de inúmeros santos! Qual era, então, a diferença entre a santa e a bruxa? Por que o discurso, igualmente baseado nas crendices e na religiosidade popular da primeira, não era demonizado pela Igreja, ao passo que o da segunda era? Ou melhor: por que o discurso da santa, ao ser resignificado – pois ele obviamente também o era – transformava-se na prova do seu contato direto com a graça divina, ao passo que o da bruxa atestava seu contato direto com o demônio?
Arrisco aqui uma hipótese que, embora já tenha sido aventada – mesmo que em outros moldes – por autores como Michelet e Palou (para citar apenas dois)6, merece maior estudo e atenção: a diferença entre a bruxa e a santa residia na condição prévia de exclusão social da primeira.
Em princípio, tanto a “santa” quanto a “bruxa” eram, de alguma forma, acusadas: uma do milagre e a outra do maleficia. Ambas, cada qual à sua maneira, confessavam diante do inquisidor ou de seus iguais aquilo que supunham ter vivenciado, visto ou praticado, usando o seu próprio conjunto de símbolos, conjunto este inserido plenamente na cultura daquela que confessava. Ou seja: descreviam, perante seus pares ou perante o inquisidor, a experiência pela qual supunham ter passado, usando a sua própria linguagem, reflexo do extrato social na qual estavam inseridas. O material que se apresentava frente ao inquisidor, para ser avaliado e traduzido em termos da cultura teológica, era em ambos os casos o acontecimento de fenômenos “extraordinários” ou o contato com seres “sobrenaturais”, descrito em termos da cultura comum, ou “popular”. Essa tradução, no entanto, ao ser feita não o era de forma inocente: ela carregava o peso da condição social da visionária, que determinava seu encaminhamento à beatitude ou ao cadafalso.
Como exemplo, vejamos o caso de Vincenza Pasini, esposa de mestre Francesco de Giovanni de Montemezzo, idosos proprietários de terras no século XV, na cidade de Vicenza, norte da Itália, não muito distante da Modena de Chiara Signorini, citada por Ginzburg. Segundo registros da época, a Sra. Vincenza
levava uma vida simples e honesta, devotada ao Senhor e a Sua Mãe Santíssima, pela qual alimentava uma devoção excepcional: seus dias eram ritmados por muita oração e boas obras; sua freqüência à igreja e às celebrações litúrgicas, e em especial sua caridade para com todos, faziam dela uma verdadeira cristã.7
Em duas ocasiões, 1426 e 1428, com a cidade assolada há anos pela peste, Dona Vicenza teve visões da Virgem Maria, que ameaçava com a continuidade da doença a não ser que se providenciasse a construção de uma igreja em sua homenagem. No mesmo ano de 1428, a construção foi iniciada e, até hoje, o Santuário de Nossa Senhora do Monte Berico recebe, todo primeiro domingo do mês, mais de 30 mil peregrinos.
Quais as diferenças existentes entre as visões da Virgem de Vincenza Pasini, que levaram à construção de uma monumental basílica, e aquelas de Chiara Signorini, que a enviaram para a prisão perpétua? Ambas se encaixam no protótipo da “divindade popular”, que ameaça, pune e agracia, conforme a vontade, necessidade ou súplica de sua interlocutora.
No entanto, longe de serem reconhecidamente uma devota e dedicada esposa de um velho proprietário de terras, a exemplo de Vicenza e Mestre Francesco, Chiara e seu marido são “dois camponeses malvistos, temidos pelos patrões, constantemente despedidos, que se vingam das injustiças de que são vítimas”8. Sendo ambas levadas frente a Inquisição, suas condições sociais e a imagem que delas se fazia as precediam.
No caso da pia Vicenza, pouco importava que sua aparição impusesse a construção de uma basílica em sua homenagem, com todo o sofrimento e privações que isso pudesse acarretar, sob a pena da desgraça de toda a comunidade. Aquela que impunha que se prostrassem aos seus pés e a adorassem havia de ser a Virgem Maria. Para a malvista Chiara, entretanto, o ser que exigia a sua adoração por algo muito pequeno (doença e desconforto para a patroa injusta), não poderia ser a Virgem, mas única e exclusivamente o diabo.
Não era, portanto, a qualidade ou a abrangência do fato sobrenatural que o levava a ser reinterpretado pelos inquisidores de acordo com os manuais demonológicos da época. Era, sim, a necessidade dessa reinterpretação, conforme os fatores sociais preexistentes ao fato. Qualquer bruxa que fosse levada diante os tribunais eclesiásticos já era, irremediavelmente, bruxa. Da mesma forma, qualquer santa que fosse obrigada a prestar depoimento diante desses tribunais já era, de antemão, santa. O processo inquisitorial apenas sancionava aquilo que a condição social da acusada já havia definido.
Vistos por esse ângulo, os métodos inquisitoriais – ameaças, privação, tortura – não podem ser considerados (como foram alhures) formas de adequar a um discurso teológico corrente as palavras de “inocentes” pagãos, curandeiros, supersticiosos ou belas mulheres que provocavam ciúmes. Seriam, sim, a resposta teológica a um discurso popular, que precisava condenar aqueles que já estavam previamente condenados pelos seus pares.
Notas:
1 Utilizo aqui as expressões “bruxas”, “feiticeiras” e “acusadas de feitiçaria”, no feminino, levando em consideração que uma parte significativa da documentação disponível sobre os processos inquisitoriais refere-se a mulheres, além do fato que o estereótipo da “bruxa” está muito mais consolidado do que o do “bruxo”. As observações constantes no texto, no entanto, aplicam-se igualmente aos muitos homens acusados, julgados e condenados pela Inquisição.
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